terça-feira, 26 de maio de 2015

Dimensões IV - Abundância

Se viessem ouvir-me agora, dizia-vos que nem o sol me visitou nesta manhã cinzenta, e nem o céu se aconchegou nos meus olhos. Sei que o irei encontrar debruçado sobre as searas de trigo dourado. Encontrar-me-ei nos seus braços, quando nelas me deitar e a terra me limpar esta dor presente, por não saber onde moram as espigas de uma vida vazia, sem pão.

Quero mesmo que venham todos visitar este meu chão. Tenho flores do campo sobre a mesa, e cachos de uva despidos em toalha bordada à mão. A cerejeira ao fundo do quintal, apresenta-se nua com os seus ramos adelgaçados, depois que um bando de pássaros a visitou. Foi ali que repousaram os seus bicos esfomeados. Migalhas já não são bem-vindas a este chão. As toupeiras esburacaram a terra e levaram as espigas deixadas por engano, ou quiçá, por mera vontade do dono para uma boa distribuição das colheitas. Serão sempre de ano para ano, as visitas subterrâneas, que farão da terra, a revolta do Verão. Nós, por nada sabermos de seus corpos moles, iremos regar a terra e calcar com os pés, os refúgios nos buracos que foram fazendo enquanto dormíamos. Se soubermos a dose certa de um alqueire de milho, saberemos a certa medida da equitativa distribuição e nada nos fará mergulhar nesta amálgama, que é ter terra sem saber cozer o pão. Saberei então dizer-vos porque se foram as cerejas neste início de Verão, assim como se colheram os frutos no fim da estação. Saberemos que na mesa, haverá o vinho escorrendo na taça que vossos olhos afiançaram ser de puro cristal. Serei mosto no seu peito, e alma a lembrar o tempo em que ao relento, absorvia da terra odores fortes das primeiras raízes a crescer na terra húmida. 

(Lembro de um dia morto pela agrura dos tempos, em que o arado rasgava a terra e eu me deitava na terra, à espera que um pé de flor, viesse florir na palma da minha mão)

Foi essa a forma que dei à fome que trazia, quando o vi a caminhar sobre a terra, e dela fizemos o leito resguardado no nosso olhar. Deitámo-nos na maciez quente e lilás de bordados frescos, trazidos pelas aragens quentes da serra, e ali ficámos até ao nascer do sol. Esse círculo de fogo que caiu pela madrugada, esperou que nos honrássemos e nos saciássemos dos novos aromas quentes do Verão. 
Temo que me queira ver vestida, mas eu, nua, disposta a tudo, para saborearmos este manjar dos deuses, enrolei o meu corpo a um manto de linho, pertença única desta mansão. 


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