Com esta loucura
De ser só um mito
E no desenlace
Lembraram à lua
Em versos que tais
Que o mundo marcou
Os sonhos desiguais
Os sons da noite trazem segredos que nunca ninguém ouviu. Sou uma privilegiada nesta noite inquieta, e enamorada das vozes e deste ruído infernal. É a passagem das horas na incerteza de alcançar o próximo apeadeiro. O ruído estende-se na berma da estrada, e o vento suave deixa um fio muito ligeiro na minha pele. Do meu cabelo negro, solta-se um brilho clareador nesta madrugada. É da densa névoa que paira sobre o rio. Remendei a estrada para poder passar livre e alegremente sem ter que pedir licença aos transeuntes, mas mesmo assim, não vi que essa mesma estrada, já tinha sido tocada por momentos que já não sabem o que são, nem são o que sabem. Deverão ser só almas que vagueiam sem destino.
Há um uma voz solicita em silêncio. Nessa direcção uma outra a alcança numa fracção de segundos, e há também olhares que se trocam em cumplicidades loucas entregues à brisa que passa. Assim me detenho perante este olhar que se foca no meu rosto, sem deixar de passar pelo meu cabelo. Se ele tiver a cor do meu olhar decerto será uma cor neutra, quase a tocar no vazio. Assim estão os meus olhos indiferentes ao movimento da cidade. Há nesta mudez uma calma inventada, porque ao longe, ouve-se o ruído dos carros que passam - audível mesmo estando eu neste estado semi-anestesiado, pelo embate violento a que me sujeitei, nesta suave brisa da madrugada. Ao longe, os barcos anunciam largada, e as luzes deixam na corrente um colorido enfeitiçado. Sobre os meus ombros há um toque gelado que é coberto com o rescaldo da noite. Maciez quente a exalar-me os sentidos. Etéreos gestos tão firmes e delicados.
(Perdi-me no teu sorriso e nos sinais de brancura com que pintas as cores da noite)
Caminho sem destino, mas acordado o sol, terei que adormecer no seu regaço. Guardo o teu olhar no meu corpo, registei o teu sorriso e o carrossel que inventaste para me mostrar as voltas que demos, ainda anda às voltas sem parar. Mesmo que eu o queira fazer rodar no sentido contrário aos ponteiros do relógio, é impossível. Tu estás lá para me travar e me ensinar como se habita um olhar esquecido numa cidade fantasma.
Vi-te hoje ao passar da esquina, enxovalhado, dobrado, encarquilhado, pela dor de não conseguires voltar a tua verdadeira face para a lua. São fases distintas que ela suporta nestes becos ensanguentados. Mas, nunca mostra ela também a sua verdade, nas noites em que uma das suas faces brilha sobre as águas que correm, serena e tranquilamente em baixo da ponte. Nesses escombros onde te deitas, já não há nada, a não ser um pedaço de chão que te aceita. De uma forma ou de outra, o chão que pisamos é de todos, mas aceitavelmente, pertence a quem por direito o ocupa, já que são as noites e os dias, os pilares que o sustêm. Há noites que são calmarias nos teus desejos, e dias que são como feixes de luz a queimar as entranhas da terra. Não sabes para onde te dirigir, e gastas o tempo a correr desenfreadamente, e sem forças para saberes discernir, se o dia ainda é manhã tardia, ou se a noite é ao entardecer, a caminhar para o abismo onde te deitas.
Lembro-me de olhar para ti, e tu sentado naquele banco de jardim, onde eu passava sempre acompanhada. Via-te, mas como não te conhecia, seguia o meu caminho, sempre na esperança de te encontrar mais à frente, quando tivessem cessado todos os olhares. Mas as vozes que te seguiam eram expostas às chuvas do fim do verão. Passei por mais um filão, e à beira rio, um beco estreito, que se deleita às costas de um sol que só espreita por entre as casas onde já nada sobrevive. Lamentos, choros de crianças e os pais são como os saltimbancos, em busca do pão que a seara já deixou de fabricar, faz tempo. Eu, inundava-te os passos de utopias, e lembranças de outros tempos em que também eu ocupava o mesmo chão.
Como sinalizar os espaços? Estremá-los de modo a que possamos ficar inteiros na terra de ninguém? Há só um caminho! Baptizá-lo e delimitá-lo com as marcas que os nossos corpos contêm. Os trajes verdadeiros são sempre manufacturados pelos olhares da alma, e vesti-la, é um gesto que nos cabe por inteiro, mesmo que nos falte um pedaço de chão.